sábado, 21 de maio de 2011

Aprenda a fazer cerveja em casa

Introdução a fabricação artesanal de cerveja

Fazendo CervejaÉ com muito apreço a este grande site que inicio esta coluna, que tratará de forma simples os principais pontos relacionados à fabricação artesanal da cerveja. Como cervejeiro artesanal, sei o quanto é difícil ter acesso a informações sobre o assunto, principalmente no início. Essa coluna terá, portanto, a intenção de esclarecer os assuntos necessários para o iniciante e também a de trazer questões à tona, até que não haja dúvidas sem esclarecimento.

 

Apesar de a intenção ser abranger os assuntos importantes sem deixar dúvidas, o enfoque será o da simplicidade, o da praticidade, dando o material necessário para as primeiras aventuras “cervejísticas” dos corajosos que se dispuserem a, muitas vezes, deixar de lado os programas domingueiros para passar 8 horas (ou mais) em frente à uma panela, tentando imaginar se as reações invisíveis estão acontecendo e se o resultado será de acordo com o esperado. Mas para os que são, como eu, apaixonados pela arte de fazer cerveja, essas 8 horas passam rápido até demais, e durante a fabricação de uma leva já se inicia o esboço do que será a próxima. Para esses, ainda, o material disponibilizado aqui provavelmente será complementado com o material disponível na literatura (infelizmente não há quase nada em português), para aí sim haver um aprofundamento. O assunto é vasto, e muitas vezes é exato, mas outras vezes é cheio de controvérsias, portanto esta coluna aceitará de bom grado perguntas, críticas e comentários. Não será nosso objetivo entrincheirar-se pelo mundo da química ou da microbiologia, mas eventualmente surgirão questões que só serão respondidas com o apoio dessas ciências, que trazem a base dos mistérios que ocorrem no processo de fabricação da preciosa bebida.

Deixem-me apresentar: Meu nome é Tiago Silva, sou Tecnólogo em Mecânica e trabalho hoje como Analista de Processos Industriais, o que inicialmente não tem nada a ver com cerveja, mas o enfoque em processos de fabricação acaba ajudando, de certa forma. Comecei a fazer cerveja por mera curiosidade, me apaixonei e agora dedico boa parte do meu tempo livre a esse assunto. Sou, portanto, cervejeiro de coração, mas não de formação nem de profissão. Tenho aprofundado meu conhecimento na literatura disponível, e principalmente através do contato com vários cervejeiros velhos de estrada, alguns dos quais com formação na área e outros com uma grande vivência neste campo. Recentemente participei da criação da cerveja Diabólica 666 (India Pale Ale), uma cerveja inicialmente fabricada por mim juntamente com meu amigo Eduardo Zotto em um caldeirão à lenha e que ganhou caráter comercial após o Psychocarnival 2009, época em que se iniciou uma sociedade com mais três amigos. Participo até hoje do processo de fabricação da Diabólica IPA, porém agora em uma cervejaria industrial. Atualmente tenho feito experiências no desenvolvimento de receitas de variados estilos e no cultivo e propagação de fermentos.

Freqüentemente sou questionado sobre o que é preciso para começar a fazer cerveja em casa. As pessoas que ainda não tiveram contato com a fabricação fazem perguntas do tipo: “O que é malte?”, “Você só cozinha tudo e deixa esfriar?”, “Em que momento você coloca o álcool na cerveja?”, “Como é que você insere o gás?”. Outras pessoas, já com conhecimento prévio, trocam idéias e já tem perguntas ou sugestões mais complexas. O fato é que ninguém realmente domina todas as nuances da fabricação da cerveja, principalmente depois que ela entra no fermentador. Por mais que a cerveja esteja projetada para ter determinados aromas, flavors e até cor específica, tudo pode mudar de acordo com as reações que se desencadeiem por um mínimo detalhe. A formação dos ésteres na fermentação, por exemplo, ainda é tema de discussão mesmo dentro dos círculos mais elevados da ciência cervejeira. Claro que, com maior conhecimento a aproximação do resultado com aquilo que foi projetado é bem melhor, mas ainda há aqueles que defendem que a beleza de se fazer cerveja em casa é justamente a surpresa do resultado. Então posso dizer que muitas perguntas só serão respondidas pela prática, pelos gostos pessoais, e que as duas qualidades pré-requisitos para o cervejeiro são Paciência e Curiosidade.

Então, para não abusar de vossa paciência e curiosidade, vou começar esboçando a resposta para algumas perguntas freqüentes:

Como é possível fazer cerveja em casa? Como é o processo?

Tarefa árdua: mexer o mosto e controlar a temperatura... Ao mesmo tempo (e por bastante tempo)!Basicamente do mesmo jeito que é possível fazer em indústria, pois o processo tem os mesmos passos básicos. Algumas etapas são diferentes quando se aumentam as dimensões, mas, em poucas palavras podem-se resumir ambos os processos em poucas etapas, que são o aquecimento de uma solução água/malte moído (eventualmente com alguns adjuntos) a uma temperatura específica, a filtragem dessa mistura e a lavagens dos resíduos, até que se obtenha um mosto (1) limpo e com as características desejadas.

Na seqüência ocorre a fervura do mosto e o acréscimo de lúpulo, o resfriamento desse mosto e a passagem para um tanque de fermentação, onde será inoculado o fermento. Após essa etapa aguarda-se um tempo definido, fazem-se transferências de um tanque a outro conforme necessário e depois se procede com o envase, que pode ser em garrafas ou em barris. Para conseguir a carbonatação (2) pode-se injetar CO2 por contrapressão ou fazer um primming (3), que é acrescentar certa quantia de açúcar e aguardar que este seja metabolizado pela levedura. Entretanto cada uma dessas etapas pode ser feita de várias formas, e todas elas possuem detalhes que fazem toda a diferença. Resumindo, é possível fazer cerveja de qualidade em casa com poucos recursos, desde que se conheça o processo e suas nuances.

Que ingredientes são usados?

Malte moído, pronto para entrar no caldeirão.Os ingredientes básicos para a fabricação da cerveja são Água, Malte, Lúpulo e Fermento. Em alguns estilos (ou adaptações) são acrescentados alguns adjuntos, como por exemplo, flocos ou gritz de milho ou arroz (4). Em alguns países há certa “proibição” quanto ao uso de adjuntos na cerveja. Na Alemanha, por exemplo, a Reinheitsgebot (5) estipula que a cerveja deve ser feita apenas com água, malte, lúpulo e leveduras (Briggs, Boulton, Brokes, 2004). Apesar da aparente simplicidade demonstrada pela humilde formulação, há uma infinidade de variações dentre esses ingredientes.

Pesagem do lúpulo. Essa etapa exige certa precisão, pois um leve descuido pode influenciar definitivamente no amargor final da cerveja, uma de suas características vitais.No caso dos maltes temos variações no que diz respeito à procedência e processo de malteação; no caso dos lúpulos as variações também estão na procedência e no beneficiamento (se será disponibilizado em pellets, plugs, in natura, ou extrato); o fermento, geralmente levedura da espécie Saccharomyces, também possui variações, principalmente na linhagem (algumas leveduras, apesar de pertencerem à mesma espécie que outras, tem características mais adequadas para determinados estilos de cerveja), mas em algumas cervejas, como nas lambics (6) ou sour beers (7) podem ser usadas leveduras de espécies diferentes, como as Brettanomyces (8), ou ainda bactérias, como as Pediococcus (9). Até mesmo a água pode ter variações. Sabemos que na prática a composição da água disponível na natureza vai bem além do H2O. Entram na composição, sobretudo, minerais que interferem em características vitais para a obtenção de uma cerveja de qualidade, como o pH e concentração de íons de cálcio, sódio ou magnésio. Presença de cloro, microorganismos ou outros compostos diferentes à condição natural da água são extremamente prejudiciais para o produto final, podendo até mesmo arruiná-lo completamente. Além do malte já citado existem ainda extratos de malte disponíveis comercialmente (inclusive alguns deles já lupulados), que carecem apenas do acréscimo de água e das etapas de fervura, resfriamento e fermentação. Esses extratos facilitam de certa forma a vida do cervejeiro artesanal, mas devido ao custo ainda é inviável utilizá-lo comercialmente, além de tornar o usuário meio preso àquela marca, ou seja, sua repetibilidade depende da repetibilidade (e longevidade) de seu fornecedor.

Quanto à disponibilidade, pode-se dizer que ainda são poucos os locais onde se podem adquirir insumos em pequena escala. Mas há estabelecimentos especializados que podem ser encontrados na internet e que fazem entregas via Correios, o que é viável, visto que dificilmente serão encomendados grandes volumes (para esses casos existem ainda as transportadoras). Alguns itens mais específicos, como fermentos diferenciados, alguns tipos de lúpulos e equipamentos especiais não serão encontrados no mercado nacional e tem que ser importados (tai uma oportunidade para os investidores de plantão).

Vamos, no momento certo, discorrer sobre esses ingredientes, de forma a nos aprofundarmos nos aspectos que possibilitam a imensa diversidade de estilos de cerveja.

O que é preciso para fazer cerveja em casa?

Ambiente do cervejeiro caseiro: pia, fogão e muita coragem para limpar a bagunça que vai se formando. Aviso aos casados: converse bem com sua esposa ou esposo antes de começar... Avise que tudo vai acabar bem!Além das virtudes pessoais que citei acima, também precisamos de algumas “ferramentas” e “equipamentos” para produzir cerveja, mesmo que artesanalmente. A escolha dos utensílios corretos é muito dependente dos objetivos, diretos e indiretos do cervejeiro, Esses objetivos podem ser de várias naturezas, cujos enfoques podem ser em: custos, otimização do espaço, produção e otimização de tempo. Lógico que queremos tudo isso junto, além de ser indispensável fazer tudo isso com qualidade. Esse seria o mundo perfeito. Na vida real temos que fazer escolhas e não seria diferente aqui. Para produções maiores só manteremos a qualidade com equipamentos, além de maiores, com mais controle, o que custa mais caro. Se quisermos ganhar tempo, precisaremos de bombas, aquecedores mais eficientes entre outros dispositivos. Porém se dispormos de um espaço pequeno, como a cozinha de um pequeno apartamento ou um canto na garagem, será necessário não ser muito ambicioso no que diz respeito a volumes de produção.

It is alive! Fermentação em garrafa de água mineral: o fermentador mais difundido entre os cervejeiros caseiros.Uma leva padrão para cervejeiros artesanais é a de 20 litros. E talvez a origem disso seja o volume de alguns utensílios comuns nesta prática, como as garrafas de água mineral, os caldeirões mais comuns, os tanques de refrigerante (post mix), e os fogões, já que muita gente usa esses itens “caseiros” mesmo para a sua produção. O volume de produção do cervejeiro artesanal está geralmente limitado a 100 litros por leva, pois acima disso as coisas começam a ficar complicadas e já carecem da inclusão de alguns métodos auxiliares, com equipamentos motorizados. Imaginando que os leitores não estão com a intenção de super volumes já no início, vamos focar em produções entre 20 e 40 litros.

Qual a diferença entre cerveja feita com extrato de malte ou com malte em grãos, e qual é o processo ideal?

O processo de fabricação da cerveja “all grain” (feita com malte em grãos) difere da cerveja com base em extratos pelo fato de que no primeiro caso é necessário converter os amidos do malte em açúcares fermentescíveis (e também em alguns não fermentescíveis), conversão que não é necessária quando se utiliza extratos, pois os açúcares já estão presentes em sua composição. No caso do malte em grãos, o processo de conversão depende da moagem, do aquecimento em água à temperaturas e tempos específicos e da filtração e separação dos sólidos.

Dá pra notar que no caso da utilização do extrato o trabalho é bem menor, mais limpo e mais rápido, porém apresenta também pontos negativos, como a falta de flexibilidade, atuando como limitador da criatividade do cervejeiro, sem contar que há certa dificuldade em encontrar esse material no mercado nacional. Para aproveitar as vantagens do extrato sem deixar de lado a flexibilidade, muitos cervejeiros fazem um processo misto, onde é feita uma mosturação pequena, apenas com os maltes especiais, e na etapa de fervura é adicionado o extrato, para servir como base (maior parte dos açúcares). Isso pode ser empregado sem problemas, mas acaba não compensando, pois o tempo será praticamente o mesmo que no caso do malte em grãos e os custos seriam maiores. Com base nisso, pode-se concluir que a utilização de extratos seria uma boa escolha para quem está iniciando, e até mesmo para cervejeiros experientes, desde que não haja compromisso com repetibilidade à longo prazo, pois sempre existe o risco de o produto ser descontinuado ou de estar em falta no mercado.

Eu sugiro que para quem tem a intenção de trabalhar com uma capacidade maior ou que inicie já com a intenção de ampliar, que já comece pelo malte em grãos. Eu sou adepto da utilização do grão moído, mas não critico quem utilize extrato, até porque já houve ganhadores de importantes concursos de cerveja artesanal pelo mundo cujas cervejas foram feitas com base em extrato. É uma questão de escolha pessoal e também de objetivos, lembrando que nada impede em se começar por um método e migrar para o outro ou até mesmo ser adepto das duas variantes.

Por qual estilo devo iniciar?

Depois de aproximadamente um mês, a recompensa do trabalho: a SUA cerveja está pronta para ser degustada! Depois de provar a SUA cerveja a sua impressão sobre as outras nunca mais será a mesma.Essa questão pode trazer polêmica, pois já ouvi vários cervejeiros sobre o assunto e a resposta nem sempre é igual. Uns indicam começar por uma cerveja cujo processo não carece de manobras que fogem ao fluxo padrão, como torrefações, caramelizações e dry-hoppings (aplicação de lúpulo aromático no final da fermentação), ou seja, processos não convencionais. Outros defendem fazer uma cerveja com melhor aceitação, para que as cobaias as pessoas que experimentarão pela primeira vez se surpreendam e assim passem a ser incentivadores. Algumas pessoas ainda indicam fazer uma receita simples, barata, para que, em caso de dar errado não se perca muito dinheiro e empenho.

O leitor deve refletir sobre qual desses argumentos é mais cabível à sua predisposição e confiança, mas antes quero acrescentar a minha sugestão: acredito que o cervejeiro deve começar pelo estilo de cerveja que ele mais gosta. Se sua preferência é uma stout, comece fazendo uma stout, que teoricamente é uma cerveja mais complexa de se “acertar”. Mas posso dizer que a satisfação de poder fazer a sua cerveja favorita é indescritível e arrisco dizer que é uma sensação mais incentivadora do que as palavras de terceiros. Já me coloco a disposição para auxiliar os desbravadores das “cervejas difíceis” dentro do que me for possível, e que este canal que acaba de ser aberto sirva, também, nesta finalidade.

Onde encontro a “receita” para fazer cerveja em casa?

Existem sites na internet com várias receitas, além de livros e softwares. Alguns exemplos de sites: www.beerrecipes.org e www.skotrat.com/go/default/beer-recipes/recipe-archives. Os livros The Homebrewers Recipe Guide (Patrick Higgins, Maura Kilgore e Paul Hertlein) e Clonebrews (Tess e Mark Szamatulski) trazem uma lista de receitas de famosos estilos. Softwares como  o Promash e Brewsmith já possuem algumas receitas standand, que podem inclusive serem alteradas. O problema maior de todas essas fontes é que, por se tratar de autores estrangeiros, as matérias primas citadas nem sempre podem ser encontradas nacionalmente. Existem algumas tabelas que tentam sanar este problema e que apresentaremos mais adiante.

Outra forma de se obter receitas é através da experiência de outros cervejeiros, que mantêm contato através das Acervas locais (Associações dos Cervejeiros Artesanais), através de comunidades no Orkut, e em encontros informais mesmo, já que hoje em dia já não é difícil encontrar algum homebrewer entre as pessoas conhecidas. Essas pessoas muitas vezes sentem-se orgulhosas em compartilhar suas receitas e experiências.

Apesar de existir uma infinidade de receitas de fácil acesso o cervejeiro, com o tempo e experiência, se sentirá mais tentado a criar as suas próprias receitas ou modificar as que já conhece, até porque mesmo que se siga uma receita pré-definida o resultado vai diferir de um cervejeiro para outro. No homebrew o processo, ou seja, o modo de lidar com os ingredientes é o aspecto de diferenciação, que pode levar receitas idênticas a resultados completamente diferentes. Nos próximos capítulos vamos tentar montar um método de como criar uma receita e o que esperar dela.

Glossário
  1. Mosto: cerveja antes de fermentar (em etapa inicial de fabricação).
  2. Carbonatação: processo de formação (ou inserção) de gás carbônico na cerveja.
  3. Primming: um tipo de processo de carbonatação, onde se acrescenta uma quantidade calculada de açúcar fermentescível na cerveja pouco antes do envase. Esse açúcar acaba transformando-se em etanol e CO2 por fermentação alcoólica e gera a pressão desejada na garrafa.
  4. Gritz de milho/arroz: são os grãos desses cereais degerminados e granulados, utilizados como complemento por algumas cervejarias.
  5. Reinheitsgebot: A famosa Lei de Pureza Alemã, promulgada pelo Duque Guilherme IV da Baviera, em 23 de abril de 1516. Essa lei regulava o preço das cervejas alemãs, além de instituir que os únicos ingredientes que poderiam ser usados seriam água, malte e lúpulo, mais tarde foi acrescentado o fermento.
  6. Lambic: Cerveja originalmente produzida na Bélgica através do processo de fermentação espontânea, ou seja, através das leveduras e bacterias que existem no ambiente.
  7. Sour Beer: Cervejas fermentadas por vários tipos de microorganismos (não somente as Saccharomyces, formadoras das Ales e Lagers) e que possuem gosto ácido e aromas tártaros.
  8. Brettanomyces: Levedura utilizada em algumas cervejas, como Lambics e Sour Beers, que tem uma função sensorial interessante, atribuindo complexidade aos aromas do produto. É um microorganismo que na presença de glicose produz grandes quantidades de ácido acético, atribuindo a acidez típica desses tipos de cerveja.
  9. Pediococcus: Bactéria utilizada em alguns estilos de cerveja (sempre em conjunto com uma levedura, mas não necessariamente ao mesmo tempo) e que produz ácido acético e diacetil, substância que se caracteriza por seu aroma amanteigado.

Artigo de Tiago Silva, cervejeiro artesanal e um dos criadores da cerveja curitibana Diabólica, sobre como fazer cerveja em casa. (Esse é meu herói)

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